03 outubro 2007

Grafia...

Num outro dia, sem que nada o fizesse prever, fiz uma descoberta relevante.
Uma descoberta com uma conotação negativa mas, ao tornar-me consciente dessa realidade talvez possa procurar uma cura...
Então eu confesso, descobri que estou dependente de um corrector ortográfico.
Eu sei, é triste...

Ainda procurei umas desculpas, que não sendo totalmente esfarrapadas, nem totalmente
desprovidas de senso, não justificam em pleno o estado letárgico da minha ortografia.

Entre essas desculpas incompletas há uma que será, talvez, mais válida. Afinal eu sempre dei uma pilha de erros nos ditados, exasperando a minha professora primária. Comia letras, sobretudo consoantes, como os énes que tornam as sílabas nasaladas ou érres e ésses quando se encontram duplicados.
Cresci convicto que possuo dislexia na escrita.

Mas o caso é mais grave e os erros que me levaram a esta nota de retratação são mais básicos que a actual instrução primária.
Não são erros tipográficos em que se altera a ordem das letras na palavra ou em que se martelam letras vizinhas no teclado. Embora os teclados tenham uma certa tendência para se desviarem, sobretudo quando estou cansado.
Tenho dúvidas existenciais quando escrevo sem a rede, leia-se sem corrector.
Será já um princípio de Alzheimer?

Bom o problema está identificado.
Creio que a solução passa por continuar a escrever e sobretudo ler mais em português.
Ler noutras línguas não ajuda para a ortografia do português mas o tempo para a leitura é curto e, nestes últimos tempos, o topo da pilha inclui títulos em estrangeiro, com prioridades mais elevadas.

Não nos podemos esquecer que só conhecemos as palavras que ouvimos ou lemos.

Entretanto já lá vai mais de um ano que para aqui escrevo... assim sem mais nada.
Claro que há sempre umas notas que soam melhor que outras. O exercício da escrita não é linear.
Gostava de discorrer sobre outros temas ou com outros estilos mas nem sempre encontro
as palavras que quero, ou as que encontro não são suficientes para elevar um tema banal e considerar prendê-lo por aqui.
Claro que estou a elevar a fasquia e claro que tornando-me mais exigente diminuo (ainda mais) a
frequência das anotações e acumulo rascunhos incompletos. Uma situação a rever.


Nota cultural:

Tudo isto me fez lembrar uma citação de Stephen King:
"If you don't have the time to read, you don't have the time or the tools to write."

Que uma tradução livre revela, em português:
"Se não tens tempo para ler, não tens tempo nem as ferramentas para escrever."

11 setembro 2007

Na rua...

É dia de semana.
Sim deve ser, o sol está quase caído e o comércio ainda está aberto.

O ar está luminoso, límpido depois da trovoada.
Nuvens negras desagregam-se e afastam-se para mostrar um céu com reflexos laranja.
Está frio e a arrefecer.
Água escorre, suja, para as sarjetas.

Deve ser Outono, um lago negro, numa esquina, denuncia falta de manutenção do sistema de escoamento.
Típico! Durante o Verão, de um ano que deve ter sido de seca, ninguém se preocupa com esses detalhes.

O semáforo está verde, automóveis viram à direita.
Agitam as águas e molham os pés dos transeuntes que tentam, sem sucesso, evitar os salpicos.

Gente nas ruas desloca-se sem destino aparente.
Para lá, para cá.

Alguns param para olhar as montras, não entram, a vida deve estar complicada.
Uns param na passadeira, onde aguardam o sinal para poderem atravessar.

Numa paragem de autocarro o banco está preenchido por duas senhoras de idade, outros estão de pé, à espera, com sinais de maior impaciência.

O pregão da cigana a vender chapéus-de-chuva eleva-se, embora ininteligível, sobre o ruído das viaturas que circulam na rua e dos saltos que marcham nos passeios.
É ignorado. A chuva foi fugaz.

Reconsiderando, talvez seja a Primavera.
Não se vê vendedor de castanhas, nem se lhes sente o cheiro.
Ou esta não será Lisboa.

As árvores que se vêem, no alto da colina, são pinheiros mansos... folha perene, inconclusivos.
A passarada fugiu da chuvada.
Mas que interessa? As migrações andam destrambelhadas.

Sabe-se lá a quantas se anda.
Afinal os dias correm iguais, uns seguem-se aos outros, juntam-se em meses e estações.
Iguais, repetitivos, sem história.
Tempos estranhos.

Mergulhado nestes pensamentos amesquinhados, o homem caminha pela rua à procura de uma morada, anotada à mão, no verso de um panfleto publicitário.

Pára no quiosque para pedir direcções.
Desconfiando da sorte que o trouxe ali, desdenha o sorriso que o acolhe, ouve o que quer e segue em frente... para ser mais um entre muitos.

05 setembro 2007

Bragas...

Não haja dúvida que o Português é uma língua traiçoeira.
Por vezes é mesmo ilógica.
Este Verão deparei-me com um exemplo sintomático da perfídia língua lusa.

A construção das palavras portuguesas costuma ser razoavelmente linear e a utilização de prefixos e sufixos costuma ser bastante intuitiva.
Sub e sobre, por exemplo, são proposições comummente utilizadas como prefixos e os adjectivos por elas modificados adquirem um significado relativo, ou comparativo, de fácil compreensão.
Sufixos comuns são aqueles utilizados para a criação de diminutivos ou aumentativos (como “-inho”, “-ito”, “-ão”, etc.).

A uma “coisa” que é grande aplica-se um “-ão”, ou no feminino um “-ona”, resultando uma “coizona”.
A uma pequena um “-inho”, resultando uma coisinha (no feminino, obviamente). A coisa original fica automaticamente classificada, em termos de grandeza, entre a “coizona” e a “coisinha”.

Estas regras básicas estão automatizadas e são fáceis de explicar a quem está a fazer as primeiras incursões na aprendizagem do português.

O problema é a existência de algumas variações... vulgo excepções.

Considere-se o seguinte trio de palavras:
calças; calções; calcinhas.

A ordenação, crescente ou decrescente, destas peças de vestuário não pode ser considerada lógica quando se aplica a regra natural do português.

Neste caso é possível retirar conclusões sexistas da etimologia.
Calça é uma palavra feminina para uma peça do guarda-roupa tipicamente masculino que se imiscuiu com sucesso nos roupeiros femininos... mesmo daqueles que albergam burqas.
Calção é uma palavra masculina para uma peça que (ainda) é maioritariamente utilizada pelo universo masculino. O seu plural, calções, denota alguma virilidade e assume semelhanças com uma outra palavra, bem portuguesa, intimamente ligada ao homem.
“Calçona” é que será, talvez, o aumentativo correcto para calça mas não vale a pena complicar mais.

Não há dúvida que a roupa é encarada de forma distinta pelos sexos.
E sempre se revestiu de significados sociais impostos por estereótipos antigos.
Talvez isso justifique a discrepância linguística.

Será que os tempos caminham para uma uniformização, na verdadeira acepção da palavra?
Repare-se na proliferação inusitada desses símbolos da masculinidade que os calões representam.
Parece estar cada vez mais difundida a moda de as senhoras andarem por aí a mostrar as pernas sem o recurso à obsoleta mini-saia.

Tenho pena... perde-se aquela ondulação de tecido e a esperança, de que a corrente de ar revele um pouco mais, desvanece-se.

Acreditando na possibilidade da reciprocidade estatística, imagine-se a quantidade de machos que usam calcinhas.

Desta situação retiro a seguinte conclusão:
Está mais difícil saber quem usa as bragas.


Nota de rodapé:
Há incidentes linguísticos que não se explicam.
O facto de vestirmos calças para cobrir as pernas e calçarmos sapatos para proteger os pés é um deles.

08 julho 2007

Espaço...

O saber não ocupa lugar, lá diz o ditado, mas a mim não me enganam com essa.

No outro dia fui à feira do livro de Lisboa, já não passava pelo Parque Eduardo VII(1) havia muito tempo (claro que aqueles que possuem mentes perversas deverão abster-se de comentar).

Eu tenho um problema com aquela feira e com outras similares, por isso só lá posso ir uma vez de vez em quando, por períodos limitados, com escolta e antes de jantar.

Desta vez arrisquei, mesmo sabendo que não posso ficar exposto a tamanha catrefada de livros, sob pena de ter de meter os meus parcos haveres no prego só para poder levar para casa várias toneladas de papel impresso.

As minhas últimas passagens por este acontecimento cultural, levaram-me a aperfeiçoar o percurso da visita. Estaciono junto da Estufa Fria, desço por um lado em zig-zags aleatórios e subo pelo outro em zag-zigs erráticos. Garanto, assim, uma cobertura razoável das quatro fileiras de bancas. Este percurso não dispensa uma paragem, obrigatória, na barraquinha das farturas e churros, para retemperar as forças e enganar a fome. Algodão doce também serve, mas este ano só havia do cor-de-rosa. Outra opção é a bela maçã caramelizada, mas desta vez não as vi.

Estou a fugir ao assunto. Isto é o que dá, ter muitas ideias prontas a jorrar cá para fora, atropelam-se umas às outras. Já avisei que não é defeito é feitio e acrescento que a primeira pessoa que me tentou corrigir foi a minha professora primária, sem sucesso como se pode verificar.

Onde é que eu ia?... Ah! É verdade... no peso da cultura.
Ora é típico. Abro as portas do carro e despejo lá para dentro os catorze ou quinze sacos que por esta altura me parecem pesar perto de trinta e seis quilos cada. Sento-me e as minhas pernas e braços agradecem os minutos de repouso. Afinal aquele parque tem quinhentos metros de comprido, uma ida e uma volta aos zig-zags mói.

Uma das primeiras conclusões que retiro das minhas visitas a estes certames, ou às minhas investidas esporádicas a uma livraria ou biblioteca, é que o conhecimento ocupa espaço! E pesa! Sobretudo depois de acarretar uns quilos pela alameda acima.

Portanto refuto o provérbio!

E isto é tão verdade no papel como no mundo digital. Mesmo com a miniaturização, que fez progressos notáveis(2)! Querem guardar mais informação, arranje-se mais um disco rígido que este já está cheio, querem mais documentos, mais fotografias, mais músicas, venham mais memórias, cartões, discos compactos, discos versáteis digitais(3). Tenho uma pilha dessas coisas para meter na ordem e já não me cabem nas gavetas.
Produz-se informação a um ritmo alucinante. Para a guardar é preciso espaço!

Colocada a questão com estes preceitos, sou levado a concordar com um detective famoso que no final do século XIX ignorava por completo a teoria de Copérnico. Desconhecia mesmo que a Terra girava em torno do Sol.
O Doutor John H. Watson, ex-Oficial-Médico do Exército de Sua Majestade Britânica surpreendeu-se ao tomar conhecimento desta particularidade – elementar – do homem com quem dividia as despesas de um apartamento em Baker Street.
Para o intrépido detective essa informação era completamente desnecessária e ele tratava de a esquecer depressa para poder preencher o seu “sótão” com a mobília que lhe interessava, não o queria atafulhar com bugigangas(4).

Esta teoria parece razoável, afinal possuímos um número de neurónios limitado, as sinapses estão restringidas a um espaço exíguo.

A questão é mais delicada do que parece à partida.
Acabamos por não saber se uma informação nos vai dar jeito ou não no futuro.
Não temos forma de saber se teremos espaço para guardar outras peças sem despejar as que já temos.
Eu imagino a coisa como uma caixa de ferramentas e não considero que uma chave de fendas seja mais imprescindível que um martelo. Embora saiba, por experiência própria e porque aprendi com alguns mestres da arte do desenrasca, que uma chave de fendas pode servir de martelo e vice-versa.
Há que juntar o maior número de ferramentas possível. Devemos equipar-nos para enfrentar o mundo. Como a caixa talvez seja limitada, será necessário escolher as melhores peças, as mais precisas, as mais resistentes, as mais práticas e ergonómicas.


Anotações:
(1) Sabem qual o nome porque este parque era conhecido antes de 1902? E porque mudou de nome em 1902?

(2) A foto ao lado resume a questão, aliás já aqui notada anteriormente.
É de um disco de 5 MB, que equipava um computador IBM em 1956 e que pesava qualquer coisa como uma tonelada.
Hoje começamos a ter problemas para não perder nos bolsos as pequenas memórias portáteis de alguns GB.

(3) Vulgo DVD.

(4) Sabem quem é o detective? Claro que sabem! É elementar!
Esta constatação é feita logo no início da sua primeira aparição pública em um “Estudo em Vermelho” ou no original “A Study in Scarlet”.

18 junho 2007

Arrefecer...

Há uns tempos, diria que desde que me conheço, que ando intrigado com um assunto doméstico.
Vou direito ao assunto, sem engonhar, porque é mesmo uma questão existencial, diria até primordial, uma questão filosófica num planeta atormentado pelo aquecimento global.

Porque é que é se engoma a roupa? E quem terá sido a alminha iluminada que se lembrou disso pela primeira vez?

Ao que parece foram os chineses os primeiros a começar com esta actividade ignóbil.
A ideia era (e talvez ainda seja) alisar as sedas e os linhos, retirar as rugas aos tecidos.

O calor alivia a tensão entre as moléculas, permitindo o estiramento das fibras.
A água, ajuda a que esse alívio se verifique a temperaturas que não impliquem a destruição das urdiduras, sobretudo as de algodão.
A pressão distende os tecidos eliminando os vincos e outras rugas.
A goma, que felizmente caiu em desuso, permite que os tecidos sejam moldados tornando-os numa armadura.

Às temperaturas que normalmente se realiza esta operação (recomenda-se que varie progressivamente entre os 135º C, para os acrílicos, nylons e outras fibras sintéticas, e os 230º C para o linho), tem também propriedades higiénicas, eliminando parte daquela fauna e flora microscópica que pulula alegremente por aí.

A verdade é que as informações, apresentadas nos parágrafos anteriores, pertencem já aos domínios da cultura geral e senso comum. No entanto, quando se coloca objectivamente a pergunta: “- Para que serve passar a roupa a ferro?”, a resposta não é clara e está sempre sujeita às susceptibilidades de quem a responde.

Será uma questão de vaidade, uma questão de conforto visual.

Engomar é uma tarefa completamente supérflua!
O que é impressionante é que deverá ser, das tarefas que menos contribuem para o bem-estar da sociedade, aquela que mais contribui para a economia global e também aquela que mais contribui para o famigerado aquecimento global.

Contas rápidas...

- Um ferro de engomar doméstico, daqueles de trazer por casa, normalíssimos, que mandam umas bufas de vapor quando se carrega num botão, tem uma potência média de 1.000 Watt (nos dias que correm a maior parte dos fabricantes já oferece modelos mais potentes mas este número facilita as contas);
- Para passar a roupa de uma pessoa, gastar-se-á, em média, 1 hora por semana (não necessariamente da pessoa que veste a roupa) com o ferro ligado. Este número é uma mera estimativa com base em observações empíricas, embora se creia que esteja nivelado por baixo, não andará muito desfasado da realidade (a 5 minutos por peça teremos 12 peças por hora, um número de peças aceitável para uma média se não se fizer caso das extravagâncias);
- Considerando esta média aceitável para Portugal, multiplicando estes números pelos 10 milhões de habitantes deste país, chega-se à conclusão de que o são consumidos por ano 480 GW (sim Giga Watt! Mil milhões!), só para a roupa que se traz no pêlo.

Considere-se agora a vertente industrial, que se ocupa principalmente dos lençóis e toalhas das unidades hoteleiras e da restauração:

- A potência consumida em média por uma prensa ou ferro industrial ronda os 5.000 W;
- Considerando que estas máquinas são apenas utilizadas durante o horário de trabalho, ou seja, 8 horas por dia;
- Assumindo 240 dias úteis por ano, para facilitar as contas;
- Considere-se a existência de 1930 lavandarias e engomadorias em Portugal, número de entradas para estas duas actividades nas páginas amarelas portuguesas;
- Se cada uma destas entidades tiver 2 máquinas a funcionar obtém-se um consumo anual de cerca de 37 GW.

Contas feitas, só em Portugal é possível considerar que são consumidos mais de 500 GW por ano para passar a roupa a ferro.
As mesmas contas para a Europa: cerca de 25.000 GW gastos por ano a engomar.

Claro que todos os profissionais do ramo odiariam qualquer revolução, seria um grande rombo para a sua economia e para a economia das empresas fornecedoras de electricidade, mas a proposta fica aqui registada:

Por um planeta melhor parem de engomar!


Anotação final:
Todos temos de contribuir para um planeta mais limpo, todos temos de poupar para permitir que as gerações futuras ainda desfrutem um pouco desta pequena rocha que vagueia pelo universo. Deixo a minha sugestão, temos de começar por algum lado.

10 junho 2007

Mediterrâneo...

Nas quatro ou cinco tentativas que fiz para escrever esta nota não fui além de um chorrilho atabalhoado de palavras sem nexo.
Embora a minha insanidade seja incurável, sinto-me agora emotivamente mais frio para lidar com o mês de Maio.

Uma escrita emotiva tende a perder em objectividade.
Escrever com emoção, quero dizer, escrever emocionado, retira a lucidez necessária a uma análise clara e objectiva dos factos.
Talvez a prosa seja mais fluida, talvez a emoção funcione como catalisadora de figuras de estilo, mas nada acrescenta em realismo ou em conteúdo.

Mais problemático se torna, o encadeamento das palavras, quando as emoções são contraditórias, quando a felicidade se mistura com a tristeza e os olhos mareiam de alegria e mágoa.

Das corridas...

Terminada uma etapa é necessário olhar para a meta da etapa seguinte.
A vida é toda uma coisa ao jeito do ciclismo: metas volantes e prémios da montanha.
A estrada é longa e as suas características mudam à medida que se avança.
No meio do pelotão luta-se para chegar aos lugares da frente, disputam-se ao sprint as pontas finais.
Claro que há aqueles que pedalam por aí dopados, correndo a velocidades desumanas e atropelando os valores morais mais elementares.
Na vida não há fair play, é um salve-se quem puder constante.

A etapa que se segue terá outros objectivos e outras tácticas, neste caso terá até outro pelotão, outras equipas... e outros desafios.

Das terras...

As paisagens sucedem-se. Azuis, verdes, castanhos e todo o colorido das flores desta Primavera.
O preto riscado de branco, numa estrada a caminho do oeste.

Do mar para terra, da planície para a montanha, do chão para as nuvens!

Com novas paisagens, novos costumes.
Arquitecturas, gastronomias, línguas e outras coisas diferentes.
Outros olhares, outras interpretações.

E vemos outras maravilhas, outros recantos que fotografamos com a nossa memória... que o tempo distorce e gasta até se tornarem aguarelas esbatidas numa tela amarelecida.

Das gentes...

Sejam espectadores atentos ou parceiros na estrada, colegas de equipa, adversários ou árbitros, conhecemos novas caras à medida que os ponteiros do cronómetro giram.

Gentes... gentes que percorrem os seus caminhos, que se cruzam com os nossos.
Pessoas com quem partilhamos momentos. Instantes fugazes de uma vida a correr.
Gentes que sobrevivem ao primeiro impacto e aguentam tempo suficiente para aprenderem a suportar a nossa companhia.

Acabamos por vestir camisolas da mesma cor, mesmo que patrocinados por outras marcas.
Acarinhamos e somos acarinhados em grupos que nos acolhem, por um pelotão que pedala na mesma estrada e no mesmo sentido.

Sorrisos ou outras expressões faciais menos agradáveis denunciam estados de espírito que aprendemos a conhecer e a decifrar.

Uns guardamos como companheiros de estrada nas etapas seguintes, outros seguem por outros caminhos ou para outras provas.

Conhecer gente é uma riqueza maior.
Permitir que gente nos conheça é criar laços difíceis de quebrar.

Dos mares...

A saudade é um sentimento estranho... que se entranha segundo dizem alguns.
É como a água que verte pelas frinchas.
Ocupa os espaços vazios, escorrendo pelas fibras humanas.
É como a água, cíclica.
Evapora-se de um mar qualquer para gotejar dos nossos olhos.
E se não temos saudades de um mar temos de outro...
Ou talvez apenas de um lago.



Pequena grande anotação:
Esta nota, presa com comoção, junta apenas fragmentos de sentimentos e emoções.
Se é difícil para qualquer génio da literatura utilizar as palavras de maneira a incutir a sua afecção e sensibilidade, para mim é uma tarefa impossível.
Mas queria, ainda assim, dedicá-la... humildemente.
E dedico-a. Não como agradecimento, pois sei que não tenho de agradecer a ninguém.
Dedico-a para que o mundo saiba que há gente que aprecio.
Dedico-a porque essa gente teve paciência para cuidar de mim, mostrar-me outras coisas e outros saberes.

Com carinho...
Dedico-a às gentes do projecto Herschel-Planck, com quem foi um privilégio partilhar a estrada e o esforço.
E dedico-a às gentes lusas que trabalham numa pequena terra, cheia de
glamour, na Côte d’Azur, para que continuem a saborear o presente... na agradável companhia uns dos outros...

25 maio 2007

Cinco sentidos...

Estou atrasado nestas notas.
Não tanto por falta de inspiração mas, sobretudo, por falta de espírito... e talvez de tempo.

Do espírito falarei mais tarde.
Nesta nota assentarei apenas alguns dos porquês da falta de tempo.
Este está a ser um mês emotivo.
Tenho explorado os cinco sentidos em pleno!


Viajei a um mundo que foge ao meu conceito de normalidade.

DentesVi, com os meus olhos, montanhas cruas que se erguem como dentes em gengivas de terra fértil.Dente
Ouvi, com os meus ouvidos, pássaros chilreando cantigas que não conhecia.
Cheirei, com o meu nariz, aromas dos verdes vales polvilhados de flores que desabrocham na primavera e das encostas seguras por florestas de Pinus cembra.
Tacteei, com as minhas mãos, erva fresca e neve gelada, caruma caída e madeira a secar.
Saboreei alimentos conhecidos com outros temperos e com outros nomes.

E trepei! Subi ao cimo desse mundo!
Mais de muitos metros acima dos vales.

A treparVendo, com os meus olhos, o negrume das nuvens que encobriam os picos que marinhava.Na nuvem
Ensurdecendo, os meus ouvidos, com trovões que estoiravam imediatamente a seguir a relâmpagos que me encandeavam.
Tacteando, com os meus dedos, a pedra calcária, áspera e rugosa, sentindo o pedrisco e a chuva, frios, na minha face, e a humidade quente do suor, nas minhas costas.
Inspirando, com o meu nariz, o ar das montanhas e das pedras molhadas.

Saboreei a água fresca que escorria, caída da chuva e do degelo do granizo acima da minha cabeça.

E voei! Voei!
Explorando os cinco sentidos: para Norte, para Sul, para Este, para Oeste... e para cima!

A voar


Devo uma anotação para agradecer ao fotógrafo.
Devo-lhe um agradecimento pelas fotografias e pela organização da expedição às Dolomites no nordeste de Itália. Esta nota é para ele e para mais um companheiro de estrada e dos ares.

04 maio 2007

Saltos...

Já aqui falei de sorrisos, hoje falo de lágrimas.

Lágrimas escorrendo em torrente.
Lágrimas cujo sal se cola à pele enrugada de faces doridas.
Lágrimas limpas com mãos calejadas do trabalho árduo.
Lágrimas que se misturam com os suores frios que os pesadelos provocam.
Lágrimas por lembranças de uma vida passada em busca de uma vida melhor.

Fui tocado por um pequeno documentário sobre a emigração portuguesa, em direcção a França, durante a ditadura que assolou Portugal no século passado.
Relatos crus de gente que passou as fronteiras a Salto. Gente que andou e correu léguas, atravessando montanhas e rios, em direcção a um paraíso que nunca existiu.
Infortúnios e misérias, amalgamados nas almas enrijecidas pela fome e pela sede dos seus filhos, venceram medos e terrores. Com coragem fugiram de balas, pulando, com esperança, pelos montes para um futuro incerto.
Foram estrangeiros num país estrangeiro, estranhos numa terra estranha.
Privados de tudo, lutaram para erguer o queixo e levantar os olhos que nunca perderam o brilho.
E os que regressaram foram e são estrangeiros nas suas terras... não são de cá nem de lá.

Com os olhos húmidos, lhes rendo uma singela homenagem. A esses bravos homens e mulheres amassados por um regime abrasivo e explorados por uma economia em crescimento.
E relembro que hoje, como nesses tempos distantes, outras gentes se arriscam a saltar em condições desumanas, atravessando desertos e mares, para outras paragens em busca de apenas um pouco mais.

Nos últimos tempos, perdi alguma da pujança com que prendia estas notas.
Não sei ao certo porquê.
Falta de inspiração, sei lá.
Tem-me faltado ânimo, talvez.

Sei que muitas vezes me lembrei destas teclas, pensando para mim próprio como acomodaria as palavras para descrever uma ideia, um sentimento ou uma observação.
Têm-me faltado o verbo e o adjectivo para descrever as paisagens que as ideias desenham no meu espírito... e têm sido tantas!

Foi necessário beber um trago de nostalgia concentrada para que voltasse a pregar aqui uma nota.
E, com os pêlos eriçados e crispado pela amargura no tremor das vozes que relataram desventuras, voltei à carga... mais virão!


Notas culturais:

Para ver: "Gente do Salto - Memórias de Portugueses que fugiram para França nos anos 60" de José Vieira, editado em 2005.

Noutro contexto (ou talvez não) para ler: "Estranho Numa Terra Estranha" de Robert A. Heinlein, editado pela primeira vez em 1961. Um Livro classificado na prateleira da Ficção Científica mas com uma vertente de análise social que lhe permitiria figurar noutras áreas.

02 abril 2007

Terra...

No outro dia fui até à terra.
À terra que me viu crescer e onde já não ia há muito.
Estava diferente.
As pedras pareceram-me mais pequenas e as árvores menos familiares.
A água do rio é outra.
O rio não é o mesmo.

O casario de xisto abandonado resiste às intempéries.
Com as janelas e as portas escancaradas e as lajes dos telhados a fugirem do sítio, se a viga de castanheiro ainda não cedeu.

O caminho, agora ladeado de silvas, ortigas e outras plantas danadas ainda conduz à fonte.
Fonte onde ainda corre a mesma água, num fio de prata cristalino.
Água que tem o mesmo sabor fresco e leve dos tempos que já lá vão.
Leveza duma infância cada vez mais distante.

Mas a natureza é Mãe.
Mãe forte que faz e desfaz.
Que limpa e arranca pela raiz, renovando.

Passou a cheia depois do incêndio.
Limpou o cimento deixando apenas as pedras negras como se fossem novas.
As cinzas escorregaram pela encosta e foram levadas pela torrente de lama.
As árvores tombaram, desenraizadas.
Poucos peixes nadam no rio.
Só as pedras continuam no mesmo sítio.
E essas seguram-me as memórias.
De quando pulava por cima delas.
E tudo começa de novo.

Nada é jamais igual.
As coisas mudam.
Eu mudei.
Adaptei-me a um mundo que nem é o meu.
A uma terra... a outra terra.

A minha terra estava diferente.
E este tempo todo estive tão longe.
Mas senti-me mais perto, tão mais perto, quando lá voltei.
E tão mais longe quando de lá regressei.


Dedicatória:
Agora que peguei a moda, dedico esta nota que acabei de prender à Carolina Ó-i-ó-ai. Que, tal como eu, se sente mais próximo de casa por ver o nome da sua terra escrita num mapa.

Pequena nota para os outros:
Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência.

27 março 2007

Tendinites...

Este assunto andava a moer-me o juízo, inconscientemente e sem qualquer razão aparente.
Na verdade só interiorizei a questão como uma preocupação quando um cardume de pré-adolescentes me perturbou um jantar, que tinha todos aqueles ingredientes para ser romântico.

Boa comida, boa bebida e uma vela acesa na mesa num espaço decorado com gosto e iluminado a meia-luz.
A companhia não podia ser melhor e a conversa estava agradável.

A sala era ampla e vários grupos jantavam, espaçados, numa noite de sábado que estava demasiado quente para ser de Inverno.
A maior parte das mesas agrupavam comensais em festas de aniversário.

A mesa maior estava reservada para a festa do décimo terceiro aniversário de uma pirralha qualquer.
O bando de jovens inconscientes que a acompanhava entrou, chilreando, de rompão no restaurante.
Acercaram-se da mesa e sentaram-se com espalhafato disputando os lugares entre eles.

O nível de ruído aumentou consideravelmente mas não se tornou insuportável.
Como disse, a companhia era a melhor e voltámos rapidamente à conversa.

A nossa comida foi entretanto servida e, no silêncio entre duas garfadas, foi impossível deixar de observar a trupe de putos emproados, de telemóveis em punho, exercitando os polegares.

As últimas gerações tecnológicas, os últimos gritos da moda adolescente, câmaras embutidas e ecrãs coloridos onde se mostram as fotografias.
Músicas são debitadas para os auscultadores enfiados nos ouvidos, toques e outros sons são partilhados por ligações sem fios.
As conversas giram em torno das capacidades dos pequenos aparelhos onde se mostram os retratos tirados no momento.

Isto desviou a minha atenção e a conversa resvalou para outro tema, porventura menos interessante.

A observação daquela dúzia em meia de projectos de pessoas levou-me à seguinte afirmação:
“– Os putos de hoje não sabem comunicar. Têm tudo, toda a tecnologia nas palmas das mãos, que lhes permite estar mais perto de tudo e de todos, mas não compreendem o que é comunicar.”

Realmente olhando para aqueles jovens, ainda crianças, constatei esse facto palpável.
Uns já andavam a cirandar pelo restaurante, dentro e fora, enquanto outros ainda comiam.
Uns e outros continuavam a mexer e remexer em telemóveis.
Alguns escutavam música, outros disparavam para mais um retrato, enquanto uns outros liam as últimas anedotas recebidas do vizinho do lado.

Fiquei chocado, tentando recordar-me se aos meus treze, quando saía com amigos para uma festa de aniversário, também demonstrava esta incapacidade.
As suas vozes misturavam-se mas os poucos excertos inteligíveis que me chegavam aos ouvidos eram ocos, desprovidos de conteúdo.

Depois foi uma rápida associação de ideias, que quase esgotavam a paciência da minha bela companhia.

As calinadas no português, fruto das tentativas de mitigar as tendinites nos pulsos e polegares, poupando caracteres preciosos nas mensagens de telemóvel e nas conversas na Internet.
O “K” substitui o “Q” e não só.
Dois pontos, parêntesis e outros sinais de pontuação valem mais do que as letras.

Mas mesmo em frases que perderam a sua estrutura, com palavras abreviadas e simbolismos gráficos – nada se diz.
O vazio de cultura é enorme e as gerações que agora se estão a educar cada vez se perdem mais nesse vácuo.

A tecnologia só por si não preserva o conhecimento, apenas os dados são armazenados.
O conhecimento é a interpretação das coisas e isso os jovens não sabem fazer.
A curva descendente aumenta o declive progressivamente.
Comparem com o que aprenderam os nossos pais nos primeiros anos de escola... e os nossos avós... aqueles que o puderam fazer.

Será o progresso a devorar os nossos neurónios?
Estará toda esta panóplia tecnológica a atrofiar os nossos cérebros?
Não seremos capazes de inverter a situação?

Saímos do restaurante, eu e a paciente mulher que me acompanhou...
Eu estava com vontade de pegar num livro... um qualquer só para sentir a textura do papel e ler umas linhas, um pedaço de prosa bem escrita ou um poema.
Já na rua, enquanto passeávamos de mãos dadas, apreciei o silêncio de uma noite tranquila, amena e perfumada a anunciar a Primavera.

De repente percebi qual é o defeito desta nova juventude – não sabe o que é o silêncio!

Fazemos silêncio para poder escutar.
Escutar os outros e o que nos rodeia, para podermos comunicar e aprender.



Dedicatória:
Esta pequena nota é dedicada a uma futura Educadora de Infância que tem a paciência necessária para educar os que vêm a seguir... e que faz o silêncio necessário para me ouvir.

12 março 2007

Pequeno nada...

 

O que é que vos faz sorrir?

Não estou a perguntar o que vos faz rir.
Toda a gente sabe. Só nos rimos do mal, ou da malandrice.

O que faz sorrir?

Nunca sorriram quando saiem de casa e cheiram a Primavera, numa qualquer manhã que promete um dia bonito?
Claro, eu sei, que choram logo a seguir por saber que têm de se enfiar num qualquer gabinete, fechado com ar condicionado.

Nunca sorriram quando se afundam nos lençóis numa qualquer fria manhã de Inverno, enquanto os raios e coriscos fazem das suas lá fora?
Obviamente que a acção seguinte é gritar, porque se apercebem que o despertador tocou há mais de meia hora e estão em risco de chegar atrasados.

Nunca sorriram enquanto lêem uma notícia interessante no jornal?
Antes de se aperceberem que está rodeada por notícias sangrentas.

Nunca sorriram quanto chega o instante de regressar a casa?
Instante anterior ao chefe vos convocar para uma reunião.

Nunca sorriram quando, na sexta-feira, o relógio marca a chegada do fim-de-semana?
Espreitam pela janela e vêem um magnífico pôr-do-sol, os dias estão mais longos e anunciam na rádio chuva para os dois dias seguintes.

Nunca sorriram a uma criança no autocarro, que vos espreita timidamente de soslaio?
Mesmo antes de serem apanhados, pela beata com que partilham o assento, a deitar-lhe a língua de fora.

Nunca sorriram a uma mulher bonita na rua?
Mais ainda quando ela vos sorriu de volta?
Para vos virar as costas e oferecer outro tipo de sorriso a alguém.

Nunca sorriram ao ver pardalitos atrevidos, aos pulos, a debicar migalhas numa esplanada?
Esvoaçando de mesa em mesa, antes de um pombo fazer das suas.

Nunca sorriram ao apreciar um par de borboletas, enquanto se perguntam como é que elas conseguem aterrar no mesmo sítio, sem se embrulharem uma na outra de forma irremediável? Ou como não ficam completamente zonzas?

Nunca sorriram ao ver o arco-íris?

Nunca sorriram sozinhos?

E não vos sabe bem sorrir?

E já se aperceberam da enorme quantidade de sorrisos que existem?
E como todo o corpo pode participar num sorriso?

Já notaram como é impressionante conseguirmos distinguir entre um sorriso e um mero esgar?
Ou como um simples trejeito tem, por vezes, mais significado que um sorriso rasgado?

É engraçado como até atribuímos cores aos sorrisos.
Eles vêm em amarelo, verde ou em cores mais neutras mas os meus preferidos são os avermelhados, numa face ruborescida, preferencialmente feminina.

Os sorrisos possuem luz.
Iluminam o espírito e mais do que isso.

Mas o que é o sorriso?
É uma coisa linda, não é?

Sorrir deve ser um traço de inteligência.
Afinal só sorrimos porque compreendemos algo.
Só sorrimos porque resolvemos pequenos enigmas que nos rodeiam.
Só Sorrimos porque não pensamos nas suas soluções.

Sorrimos porque apreciamos a simplicidade de um sorriso.
Sorrimos porque nos faz sentir bem.

Talvez seja instinto... não sei.

Digam lá... O que vos faz sorrir?

04 março 2007

Silêncio!...

Que se vai cantar o fado!

Esta foi uma frase que hoje não se ouviu. Não foi necessária. O silêncio impôs-se na sala quando as guitarras começaram a tocar e uma voz sentida se elevou.

Hoje confirmei que o Fado é mais do que a música. É o sentimento de um povo que, à sua maneira desajeitada, luta por uma vida melhor.

A alegria das pessoas que o ouvem e, especialmente, o carinho daqueles que se esforçam por trazer um pouco de Portugal aos portugueses cá fora, revelam a pureza do Fado na sua expressão mais singela e popular. E esse Fado dá gosto ouvir, sentir e saborear.

O silêncio que o antecede arrepia e as palmas que se seguem trazem as lágrimas da saudade.

Saudade de um país que escorraça os seus, que os faz emigrar.
Saudade dos lugares onde se cresceu, que já não se conhecem.
Saudade das vozes amigas, numa língua que já mal se fala.
Saudade dos sabores que a fome avivava.

No fundo saudade de nada.
Lágrimas derramadas por lembranças tristes.
Lágrimas de alegria por a vida voltar a sorrir.
Lágrimas por saber que não se pode voltar.
Lágrimas pela certeza que não se quer regressar.


Não sou capaz de ouvir Fado numa aparelhagem. Repudio mesmo as estrelas que o cantam, que nunca sentiram na pele o que é ser fadista...
Trilhar o mundo, labutar de sol a sol e morrer de pé longe da terra que os viu nascer.
Fado é destino... e fadistas os que o enganam.

25 fevereiro 2007

Momo...

Das várias questões existenciais que assombram o espírito humano, creio que aquela que me deixa mais frustrado, por não conseguir encontrar uma resposta sólida, terá a haver com as origens da normalização.

O ser humano gosta de definir normas, sente-se mais seguro se as seguir.
As peças da vida parecem mais simples de encaixar se seguirmos caminhos pré-determinados e tomarmos as opções normais a cada momento.
Tornamo-nos em vagões de um comboio que segue os trilhos que são colocados e mantidos pela sociedade, essa massa de gente normal que se agrupa espontaneamente. Vagões normalizados, em classes – primeira, segunda, terceira.
A locomotiva não se vê, está bem lá para a frente, expelindo fumo que nos tolda a vista e nos enche os pulmões de fuligem.

Mas o que é normal? Será ser igual aos outros?
E o primeiro de todos foi igual a quê?

A teoria do criacionismo reflecte a necessidade humana de normalizar. O criador teria uns moldes a partir dos quais criou todo o Universo e ter-nos-ia criado à sua imagem e semelhança.

Mas a natureza rejeita a normalização. Será mais difícil encontrar um círculo perfeito na natureza que um trevo de quatro folhas.
Aqueles que se mantêm iguais, que se tornam normais, extinguem-se.
O equilíbrio natural, que é mantido pela única lei que a Natureza conhece – a lei da sobrevivência, existe porque nada é normal. Ou porque será normal ser diferente!

Se a Natureza normalizasse existiriam apenas três espécies no planeta – vegetais, herbívoros e predadores. Não existiria esta biodiversidade que parece atrapalhar-nos.

A normalização é uma quimera, perseguida pela estatística, mas os seres humanos revelam características tão díspares que o grau de incerteza, apresentado em letrinhas pequeninas, se torna na única informação relevante.
E, não poucas vezes, na única informação de esperança.

Por diferentes escalas, em diferentes níveis, somos colocados em caixas normalizadas e fechados hermeticamente por determinados períodos. Finda a data de validade, somos reclassificados e novamente etiquetados.
Somos apenas mais uns, desta mole de gente, separados em porções para caber nas caixinhas.
Porque nem todos são altos e nem todos serão baixos.
Porque nem todos são gordos e nem todos serão magros.
Porque nem todos são bons e nem todos serão maus.

As classificações, as regras e os regulamentos, são criados por quem se sente normalmente superior. Por quem quer definir os níveis de normalidade inferior de quem vai a reboque na parte de trás do comboio. Mas esses esquecem-se que:

A evolução não é feita por aqueles que se tornam locomotivas.
A evolução é feita por aqueles que têm a coragem de descarrilar.


Influências:
Um filme que marcou a minha vida foi “Momo”, baseado no livro escrito por Michael Ende.
Quando o vi pela primeira vez era talvez demasiado novo para compreender as suas metáforas, mas os homens cinzentos perturbavam-me, eram todos iguais, descoloriam o mundo.

Michael Ende escreveu outro clássico da minha infância – “A História Interminável”.
A adaptação ao cinema d’“A História Interminável”, que vi antes de saber ler em condições, não cobre todo o enredo do livro e não agradou o autor. No entanto, é claramente transmitido o apelo ao uso da imaginação e fica demonstrada a destruição que provoca uma sociedade estéril de ideias.


Nota final:
Uma sociedade torna-se estéril de ideias quando os indivíduos que a compõem são restringidos ao seu espaço intelectual. Uma ideia nasce numa cabeça, não em muitas, mas normalmente só se desenvolve se puder ser partilhada.

20 fevereiro 2007

Três efes...

Não é do meu tempo a moda de descrever Portugal como a pátria dos três efes:

  • Fado – que tinha em Amália a sua grande embaixadora;
  • Futebol – com Eusébio, o Pantera Negra, a marcar golos pelo Benfica e pela selecção;
  • – onde Fátima se revela uma capital.

Estes efes resumiam não só uma realidade como eram, ainda, promovidos.
Uma campanha de propaganda para dentro e também para fora deste Império.

A voz da diva do fado ainda hoje faz vibrar os tímpanos de milhares de estrangeiros. Tenho a sensação estranha de que é mais ouvida, mais admirada e mais apreciada pelas gentes de fora.

O lugar que alcançou no Panteão Nacional, numa sala que mudou de nome(1) para a acolher e que obrigou a Assembleia da República a alterar a lei das transladações, será talvez um reconhecimento de um país que não sabe como lhe agradecer nem soube como a acariciar depois da revolução dos cravos.

A minha opinião sobre este assunto pouco conta, mas creio que o gavetão no cemitério dos Prazeres, seria uma maior atracção turística, assim ao jeito da Édith Piaf e dos outros ilustres no Père Lachaise(2). Esta opção manteria a cantora do povo junto do povo, nada mais justo.
Além disso a carreira 28 percorre um dos mais belos trilhos de Lisboa, subindo a colina mesmo até à praça S. João Bosco.
Se tivermos a sorte de não ficar bloqueados por um qualquer automóvel estacionado em cima dos carris na calçada do Combro.

Não sou um fã do Fado.
Fado é o destino, a sorte, a fortuna, nunca percebi porque têm de o rotular de triste e de o cantar amarguradamente.
É certo que a saudade é sentimento intrinsecamente luso e que o pessimismo tem um lugar reservado, de destaque, na nossa cultura, mas fado é uma palavra ambígua e prefiro levantar o moral.

De futebol não falo. Não evoluiu. Pelo menos não como desporto, talvez como arma de arremesso político e de propaganda. Aumentaram as maquias envolvidas, para que o efeito soporífero seja mais eficaz.
Quando o Eusébio se finar ainda hão de sugerir um sarcófago no Panteão.

Dos três tirámos dois, sobra um.
E cantam os Xutos:

“A 13 de Maio
Na Cova da Íria
Apareceu brilhando
A Virgem Maria”

Este será um tema mais melindroso.
Porque está enraizado mais fundo na nossa cultura.
Por não podermos retirar Portugal de um contexto mais vasto. Mais vasto no tempo e no espaço.

Como me considero agnóstico devo o respeito à Fé, seja ela qual for, mas reservo-me o direito à crítica, construtiva, sobre os dogmas que não encaixam na minha visão das coisas.

Sobre a religião escrevem-se tratados. Será um tema inesgotável para psicólogos ou sociólogos.
Hoje não vou por aí(3)... já fui noutros dias... provavelmente voltarei noutro dia.


Anotações:
(1) Amália, a primeira mulher no Panteão Nacional, foi transladada para a Sala dos Escritores. Não sendo escritora a sala foi renomeada Sala da Língua Portuguesa. Na mesma sala estão, se não me engano, Almeida Garret, João de Deus e Guerra Junqueiro.
Por acaso acho interessante, não consegui encontrar uma lista das personalidades sepultadas no Panteão Nacional. O sítio do IPPAR só se preocupa com a arquitectura das obras de Santa Engrácia.
Sei que estão por lá muitos ilustres Portugueses e que muitos outros são evocados por cenotáfios... mas quem?

(2) Père Lachaise é o cemitério do Este de Paris. Talvez seja um dos mais famosos cemitérios do mundo e seguramente um dos mais visitados. Entre outros famosos estão por lá Édith Piaf, Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Moliere e Jim Morrison. Descobri que disponibilizam na rede uma visita virtual em: http://www.pere-lachaise.com/
Esta pode ser uma ideia para o cemitério dos Prazeres, ou mesmo para o do Alto de S. João... afinal também já estão para lá muitos famosos. Seria seguramente uma ideia excelente para o IPPAR apresentar o Panteão ao mundo e, quiçá, os outros monumentos sob a sua alçada.

(3)
Não vou por aí... quem escreveu este verso? E qual o título do poema? Estas hoje valem o chupa.

07 fevereiro 2007

Audácia...

Em 2006, George F. Smoot partilhou o prémio Nobel da Física com John C. Mather, pela descoberta das propriedades da Radiação Cósmica de Fundo (Cosmic Background Radiation).

Em poucas palavras, tentando ser sucinto, a Radiação Cósmica de Fundo, microondas que viajam por esse espaço negro, será quase tão antiga como o próprio Universo.
São os primeiros raios de luz que se libertaram da massiva bola de energia e matéria que existiu pouco depois do Big Bang.

Sempre que olhamos para o céu estamos a olhar para o passado.
Recebemos a luz do Sol cerca de oito minutos depois desta ser libertada pela nossa estrela e os pontos luminosos que apreciamos no céu nocturno são luz emitida há milhares de anos.
A radiação de fundo permite-nos olhar para um passado ainda mais distante.

A ideia destes peritos é um pouco como a dos meteorologistas... mas a escalas diferentes.
Os modelos criados pelos meteorologistas para que seja possível prever o tempo, ainda que com algum grau de incerteza, foram criados com base na recolha de uma enorme quantidade de informação, durante os últimos séculos.
Estes meteorologistas espaciais pretendem prever o futuro do Universo e para isso querem analisar os dados do passado, verificar a sua evolução e construir um modelo que seja minimamente fiável.
A radiação cósmica apresenta-se como um registo fidedigno de tudo o que se passou...
Claro que é preciso recolhê-la e saber analisá-la e foi exactamente nessa área que George Smoot deu um grande contributo para a ciência.

George Smoot esteve presente na apresentação à imprensa do satélite Planck, que está a ser construído pela Agência Espacial Europeia para estudar estes assuntos em profundidade, e concedeu uma curta entrevista.

Nessa entrevista, algo informal, afirmou que este género de conquistas científicas e os objectivos a que a Humanidade se propõe alcançar revelam uma extrema audácia.
Na realidade, como ele muito bem coloca a questão, a Humanidade está a tentar perceber o passado e o futuro do tempo e da matéria do vasto Universo olhando para o “vazio” a partir de um minúsculo grão de areia confinado num brevíssimo intervalo de tempo.

Se pensarem que:
- se estima que o Big Bang aconteceu há uns 15.000.000.000 (quinze mil milhões) de anos, mais milénio menos milénio
- que o nosso calhau tem qualquer coisa como 4.567.000.000 (cerca de quatro mil milhões e meio) de anos, mais século menos século
- e que o Homo sapiens se desenvolveu há “apenas” pouco mais de umas centenas de milhar de anos (200.000 a 300.000 anos).

Percebem rapidamente que as escalas de tempo envolvidas são demasiado grandes para que façamos contas de cabeça e que será realmente um feito se alguma vez conseguirmos compreender o que se passou antes de abrirmos os olhos.

Gostei de me sentir audacioso, de ter sentido que pertenço a uma espécie curiosa e exploradora do Espaço e do Tempo.

Mas o que mais apreciei da entrevista de George Smoot, foi a sua candura inocente quando sentiu a necessidade de justificar porque dedica o seu intelecto e, enfim, a sua vida a esta causa... a este conhecimento longínquo.

Não vou apresentar as suas palavras uma por uma, teria de as traduzir do Inglês e poderia cometer alguma incorrecção mas deixo aqui o essencial das suas convicções.

Para George Smoot, conhecer e validar cientificamente as origens e o futuro será convergir para uma teoria única, que será reconhecida pela Humanidade como válida. Unificará crenças e religiões, eliminará conflitos.
Isto numa altura em que as tensões mundiais estão elevadas, que a Humanidade terá novos desafios, vai ter de descobrir caminhos alternativos, para produzir energia, para atenuar as alterações climáticas, et cetera.

Uma ideia ingénua? Utópica? Talvez... mas é reconfortante.
De um optimismo genuíno. E de esperança.



O que ele não disse foi que no verso desta medalha está o esforço financeiro, estão os vários milhões que se lançam ao espaço para tentar perceber estas coisas, não poucas vezes em desperdícios, em projectos ineficientes... em corridas à Lua ou maratonas a Marte...
Está em ficar pelo caminho ou atrasar a chegada por meras opções políticas... está em ser do contra só porque sim.

Antes de unificar ainda há que resolver quezílias surdas, mudas e mal disfarçadas entre intervenientes directos nas decisões de projectos científicos deste nível, que sobrepõem interesses pessoais e nacionais, entre outros, aos interesses da Humanidade.

Ignorados por estes dois reversos do universo estão os milhões que morrem de fome, que olham as estrelas porque não têm mais nada... e estão tantos problemas que permanecerão insolúveis...

Entre o Longe e o Tudo está o Nada.

Certo é que o Universo existia antes e existirá depois deste breve sopro de vida humana.
Como dizia alguém, nada se perde, tudo se transforma...
Os átomos que nos animam serão matéria-prima de outras estrelas e outras galáxias.

Acho que o maior problema está em aceitarmos a nossa insignificância... e em aceitá-la com dignidade.

Há que voar! Alto! Longe! Mas não devemos esquecer as nossas origens, as nossas raízes.
Ao escaparmos a força gravítica deste planeta azulado não devemos esquecer aqueles que deixamos para trás.
E devemos estender-lhes a mão e levá-los a passear connosco... afinal somos apenas matéria e energia...


Anotações:
Um artigo sobre a apresentação do Planck pode ser visto aqui:

http://www.esa.int/esaSC/SEMM3XSMTWE_index_0.html

As ligações para a entrevista estão a meio do artigo, o vídeo está dividido em duas partes.
Outras informações sobre a Radiação Cósmica podem ser encontradas no mesmo sítio.

25 janeiro 2007

Tema...

Há tempos um amigo perguntou-me, com ar sério, porque não escrevia eu um livro.
Obviamente o rapaz não lê estas notas... se o fizesse já saberia a resposta.
Na altura não respondi, ri-me e não pensei mais no assunto.

Hoje, enquanto fazia o jantar, descobri a resposta.
Se eu escrevesse um livro haveria de ser sobre culinária prática.
As razões são várias e enumero-as de seguida.


Não tenho estofo para mais!
Sejamos realistas!
Não tenho a imaginação dos grandes mestres da literatura.
Não tenho a prosa criativa que se exige numa obra-prima.
Nem tenho a arte necessária a uma poesia sem rima.

Limitado que estou, teria de escrever sobre um qualquer tema que não exija muito do meu estéril engenho criativo.

Gosto de ver os outros felizes, gosto de ver sorrisos e ouvir gargalhadas.
Sem jeito para a comédia teria de me apresentar como o jogral de serviço.
Como não tenho outras aptidões...

Teria de assumir que sou um perito na arte de cozinhar manjares intragáveis, desenrascando os ingredientes, essenciais às receitas, que estão em falta porque me esqueci de os comprar.

Teria de alardear que sou hábil no empilhamento da loiça por lavar.
Ilustraria com esquemas e algumas noções básicas sobre a lei da gravidade aplicada a copos, pratos e outros acessórios.

Porque sei que estes assuntos são caros à minoria masculina que habita este planeta, faria um esforço para incluir capítulos sobre: “como vencer a timidez e perguntar à mulher onde ela arrumou os tachos” e “como explicar à mulher que para se cozinhar é necessário sujar a cozinha e por vezes outras divisões da casa”.

Seria um livro apreciado pela maioria feminina, que o leria complacente para com os homens que se aventuram na sua esfera territorial, que sentiria a vaidade de ler as suas virtudes sublimadas pela incompetência crónica dos homens.

Atingido o vasto grupo dos leitores adultos, homens e mulheres, bastaria, para garantir que seria um campeão de vendas e de cópias piratas, incluir alguns desenhos para colorir.
Garantindo também presença na secção de livros infantis.
Seria um livro para toda a família, para os solteiros, os casados e os divorciados de todas as idades.


Por estas e por outras acho que se resolver um dia escrever um livro, salvo se as condições apresentas se alterarem radicalmente, este será ilustrado e versará sobre a gastronomia britânica. Será curto. Insalubre mas colorido!

Como tenho uns resquícios de pudor não me meto nisso.


Pequena nota para a minha mãe:
Não te preocupes mãe! Não estou a passar fome.
Não mãe, isto é tudo a fingir.
Sim, o micro-ondas funciona muito bem!
Pensei em arranjar loiça descartável mas isso é muito mau para o ambiente.
Como é que fazes o molho do esparguete à bolonhesa ficar com aquela cor avermelhada?

23 janeiro 2007

Cabo...

Solta a morna nesse crioulo doce!
Vibra as cordas da guitarra nessa bossa-nova suave!

Embala com essa cantiga de ninar!
E solta a voz nesse landu maroto!
Meneia com essa coladeira!
Samba devagar esse funaná!

Ai, mulatinha canta!
Ah, mulatinha dança!
Aroma da Praia, sabor a Sal!
Ah, mulatinha canta! Dança!
Canta e encanta!


Anotem:
Mayra Andrade.
Lançou o seu primeiro album - Navega - em 2006.
Precedeu Omar Pene e Salif Keita no midem.
Brilhando sem ofuscar para um público apático.

21 janeiro 2007

Lado oposto...

Pouco passa das três da tarde.
O Sol apresenta-se com um brilho tímido, entrecortado por uma camada de nuvens altas.

Estou parado no trânsito sem saber porquê.
Uma multidão deambula pela rua, aparentemente sem objectivo.
É domingo, um aprazível domingo de Inverno.

Cinco minutos mais à frente, um cartaz de cores garridas anuncia o início de um qualquer festival de música.
Nada mais banal, penso eu, numa terra que tem um palácio de festivais.

A polícia interrompe o trânsito, um, dois, três bólides de luxo cruzam a estrada em direcção a um hotel. Vidros escurecidos ampliam a curiosidade de quem espreita à espera de ver os artistas.

Um bando de gentalha histérica corre atrás das viaturas. Máquinas fotográficas em punho e blocos de notas esperançados num autógrafo.

Crianças saltam, alegremente, nuns trampolins do outro lado da rua. O carrossel anuncia nova viagem e recomeça a girar. Gelados, pipocas e algodão doce...
A pureza dos seus risos é um contraste gritante com os espasmos colectivos em frente ao hotel.

Maralha que deixa de apreciar a simplicidade das coisas, que procura na confusão um rasgo de felicidade efémera, nos sorrisos de outros por entre os disparos dos obturadores, comprimidos contra a vedação.

O trânsito avança devagar, libertando-me do tumulto. Passo à frente do hotel e olho para a alegria sincera das crianças no lado oposto.

19 janeiro 2007

Queijo...

Começo pelo supermercado, onde fui para comprar duas ou três coisas, antes de regressar a casa depois de mais uma semana de trabalho.

Ignorei a minha regra básica número um das compras: “Não ir às compras com fome.”
Resultado: gastei umas sete vezes mais dinheiro e cerca de cinco vezes mais tempo do que o inicialmente previsto.
Isto para não falar da quantidade de comida de qualidade e gosto dúbios que comprei a pensar que devia experimentar.
Afinal meti para o cesto um monte de coisas que na altura tinham um aspecto apelativo mas que agora... enfim... alguém há-de comer aquilo, hei-de ter fome noutros dias.

A verdade é que saí de lá contente e ainda parei naquela padaria da esquina para comprar uma baguette quentinha.

Confesso que depois de um repasto avantajado e carregado de sabores ricos e fortes, fiquei orgulhoso. Ao fim de quase um ano de exílio, consegui finalmente descobrir sabores mais de acordo com o meu requintado palato lusitano.
Um salsichão bolorento, umas fatias de paio, um pedaço de queijo de cabra, umas azeitonas retalhadas temperadas com alho e, em estreia absoluta, manteiga com sal.

Esta manteiga vai muito melhor no pão quentinho que aquela mixórdia doce, que vendem às toneladas e a que chamam beurre doux.

Claro que continuo a perceber patavina de queijos franceses, aliás hoje afirmei ao almoço que é difícil encontrar um bom queijo em França.
O meu erro foi tê-lo afirmado, em francês, a uma mesa cheia de franceses.
Embora ofendidos não me deixaram os olhos negros. Uns porque me acharam estupidamente ignorante e acharam que não merecia o esforço e outros porque olharam para mim e acharam que eu chegava para eles.
Obviamente, encheram-me a cabeça com as virtuosidades das queijarias francesas e de todas as outras coisas que eles consideram a excelência da gastronomia Universal.

Bem, fugi ao assunto do dia... hábito que não consigo perder e contra o qual continuo os meus exercícios de reabilitação. O que eu queria anotar hoje era, com certeza, muito mais interessante que estas discussões surdas sobre comida, com tipos que têm papilas gustativas primárias, que não acompanharam a evolução ou que foram manipuladas geneticamente.
Mas tenho a barriguinha cheia, com sabores agradáveis. Estou satisfeito.

Dizem que o que o queijo faz esquecer... se calhar foi isso...

10 janeiro 2007

93...

Acabaram-se as Festas! Ufa finalmente!
Chegou ao fim a época mais estúpida e hipócrita do ano.

E dei mais uns dias de descanso a estas notas, pois poderia ainda escrever algo menos apropriado para esta quadra que se quer de Paz.

O meu telefone deixou finalmente de anunciar aquelas curtas mensagens escritas, cheias de amor e carinho, enviadas por aqueles que para nós só existem nas agendas esquecidas nas memórias dos aparelhos.

O comércio já acusa a falta da clientela rafeira, que enche os centros comerciais durante três semanas inteiras e ainda pergunta porque é que as lojas não estão abertas até à meia-noite do dia 24.
Grandes autocolantes e cartazes anunciam nas montras as Promoções e Saldos.

Afogados nas contas, nos rios de dinheiro que se gastaram nestes dias festivos, Janeiro é um mês duro e longo. E ainda se seguem Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro antes de um novo Dezembro.

Já houve tempos em que eu gostava da quadra natalícia.
Vibrava com a antecipação de uma mesa cheia, de comida e de gente, enquanto polvilhava os sonhos e filhoses, com açúcar e canela, que a minha avó fritava durante horas a fio.
Ao redor do bacalhau e das couves da consoada, a excitação que se começava a elevar, era alimentada também pelos sorrisos mais rasgados e risos mais altos do que habitualmente.
Terminada a sobremesa os minutos até às doze badaladas eram sempre tão compridos que fazia por comer devagar ou continuar a saborear outras iguarias.

Mas isso era antes... antes de crescer.

Depois veio a constatação de que o Natal é só para alguns poucos felizardos.
Que a esmagadora maioria do mundo não recebe um presente.
Veio a noção de que os valores que se pregam nestas datas são esquecidos durante o resto do ano.
Que a sociedade está mergulhada num sentimento consumista e que se consome a si própria.
As tradições perder-se-ão. Dentro em breve não serão mais que resquícios nos livros de contos.

Antes sorria, com compaixão, quando lia o conto “Natal” do Torga.
Este ano, quando o procurei nas prateleiras da estante e reli, dos meus olhos escorreram lágrimas de uma pura tristeza reconfortante.
Não é pela minha formação católica que me revejo naquele conto, mas sim pelos valores que o meu juízo filtrou como válidos e que defendo com a minha honra.
Filtros de alguma lógica e bom-senso que devo à família.

A família também se renova, as gerações sucedem-se.
Talvez um dia o meu entusiasmo renasça das cinzas e voe como a Fénix, nos rostos e corações dos mais novos que hão-de vir.
Passarei o testemunho!

A felicidade está e estará sempre nas coisas simples.

Nota nostálgica esta, afirmarão vocês com toda a convicção.
Terão razão.

Como eu disse a família renova-se.
Com esta nota, a primeira presa em 2007, assinalo a morte da Vó Xandrina.
Para mim, ela representará sempre mais que os outros a quem fiz referência neste bloco de notas. Se fui capaz de assinalar outras efemérides necrológicas, algumas tecendo largos elogios, por uma questão de coerência terei de perpetuar, aqui também, a memória da minha avó.

Vó Xandrina
Alexandrina dos Prazeres, senhora dos seus 93 aninhos, não acreditava que o Homem tinha caminhado na Lua mas acreditava em nós, nas três gerações que gerou e criou.
Fico apenas chateado por ela me ter faltado à promessa de esperar pela quinta geração da família.
Sei que tenho a minha cota parte de responsabilidade nesse aspecto e que há limites que nos são impostos pela Natureza.
Por isso afirmo que aqueles que serão nados saberão quem ela foi, o que fez, o que disse.
Saberão também quem foram os outros de quem serão descendência.
Há coisas que têm de ser preservadas.

E assim começa 2007. Como 2006 terminou.
Gente a nascer e gente a morrer...
Celebre-se a vida.
Com mais entusiasmo e sentimento que o Natal.


Pequena nota:
Para quem não conhece "Natal", procure-o nos "Novos Contos da Montanha" de Miguel Torga.