11 setembro 2007

Na rua...

É dia de semana.
Sim deve ser, o sol está quase caído e o comércio ainda está aberto.

O ar está luminoso, límpido depois da trovoada.
Nuvens negras desagregam-se e afastam-se para mostrar um céu com reflexos laranja.
Está frio e a arrefecer.
Água escorre, suja, para as sarjetas.

Deve ser Outono, um lago negro, numa esquina, denuncia falta de manutenção do sistema de escoamento.
Típico! Durante o Verão, de um ano que deve ter sido de seca, ninguém se preocupa com esses detalhes.

O semáforo está verde, automóveis viram à direita.
Agitam as águas e molham os pés dos transeuntes que tentam, sem sucesso, evitar os salpicos.

Gente nas ruas desloca-se sem destino aparente.
Para lá, para cá.

Alguns param para olhar as montras, não entram, a vida deve estar complicada.
Uns param na passadeira, onde aguardam o sinal para poderem atravessar.

Numa paragem de autocarro o banco está preenchido por duas senhoras de idade, outros estão de pé, à espera, com sinais de maior impaciência.

O pregão da cigana a vender chapéus-de-chuva eleva-se, embora ininteligível, sobre o ruído das viaturas que circulam na rua e dos saltos que marcham nos passeios.
É ignorado. A chuva foi fugaz.

Reconsiderando, talvez seja a Primavera.
Não se vê vendedor de castanhas, nem se lhes sente o cheiro.
Ou esta não será Lisboa.

As árvores que se vêem, no alto da colina, são pinheiros mansos... folha perene, inconclusivos.
A passarada fugiu da chuvada.
Mas que interessa? As migrações andam destrambelhadas.

Sabe-se lá a quantas se anda.
Afinal os dias correm iguais, uns seguem-se aos outros, juntam-se em meses e estações.
Iguais, repetitivos, sem história.
Tempos estranhos.

Mergulhado nestes pensamentos amesquinhados, o homem caminha pela rua à procura de uma morada, anotada à mão, no verso de um panfleto publicitário.

Pára no quiosque para pedir direcções.
Desconfiando da sorte que o trouxe ali, desdenha o sorriso que o acolhe, ouve o que quer e segue em frente... para ser mais um entre muitos.

05 setembro 2007

Bragas...

Não haja dúvida que o Português é uma língua traiçoeira.
Por vezes é mesmo ilógica.
Este Verão deparei-me com um exemplo sintomático da perfídia língua lusa.

A construção das palavras portuguesas costuma ser razoavelmente linear e a utilização de prefixos e sufixos costuma ser bastante intuitiva.
Sub e sobre, por exemplo, são proposições comummente utilizadas como prefixos e os adjectivos por elas modificados adquirem um significado relativo, ou comparativo, de fácil compreensão.
Sufixos comuns são aqueles utilizados para a criação de diminutivos ou aumentativos (como “-inho”, “-ito”, “-ão”, etc.).

A uma “coisa” que é grande aplica-se um “-ão”, ou no feminino um “-ona”, resultando uma “coizona”.
A uma pequena um “-inho”, resultando uma coisinha (no feminino, obviamente). A coisa original fica automaticamente classificada, em termos de grandeza, entre a “coizona” e a “coisinha”.

Estas regras básicas estão automatizadas e são fáceis de explicar a quem está a fazer as primeiras incursões na aprendizagem do português.

O problema é a existência de algumas variações... vulgo excepções.

Considere-se o seguinte trio de palavras:
calças; calções; calcinhas.

A ordenação, crescente ou decrescente, destas peças de vestuário não pode ser considerada lógica quando se aplica a regra natural do português.

Neste caso é possível retirar conclusões sexistas da etimologia.
Calça é uma palavra feminina para uma peça do guarda-roupa tipicamente masculino que se imiscuiu com sucesso nos roupeiros femininos... mesmo daqueles que albergam burqas.
Calção é uma palavra masculina para uma peça que (ainda) é maioritariamente utilizada pelo universo masculino. O seu plural, calções, denota alguma virilidade e assume semelhanças com uma outra palavra, bem portuguesa, intimamente ligada ao homem.
“Calçona” é que será, talvez, o aumentativo correcto para calça mas não vale a pena complicar mais.

Não há dúvida que a roupa é encarada de forma distinta pelos sexos.
E sempre se revestiu de significados sociais impostos por estereótipos antigos.
Talvez isso justifique a discrepância linguística.

Será que os tempos caminham para uma uniformização, na verdadeira acepção da palavra?
Repare-se na proliferação inusitada desses símbolos da masculinidade que os calões representam.
Parece estar cada vez mais difundida a moda de as senhoras andarem por aí a mostrar as pernas sem o recurso à obsoleta mini-saia.

Tenho pena... perde-se aquela ondulação de tecido e a esperança, de que a corrente de ar revele um pouco mais, desvanece-se.

Acreditando na possibilidade da reciprocidade estatística, imagine-se a quantidade de machos que usam calcinhas.

Desta situação retiro a seguinte conclusão:
Está mais difícil saber quem usa as bragas.


Nota de rodapé:
Há incidentes linguísticos que não se explicam.
O facto de vestirmos calças para cobrir as pernas e calçarmos sapatos para proteger os pés é um deles.