25 janeiro 2007

Tema...

Há tempos um amigo perguntou-me, com ar sério, porque não escrevia eu um livro.
Obviamente o rapaz não lê estas notas... se o fizesse já saberia a resposta.
Na altura não respondi, ri-me e não pensei mais no assunto.

Hoje, enquanto fazia o jantar, descobri a resposta.
Se eu escrevesse um livro haveria de ser sobre culinária prática.
As razões são várias e enumero-as de seguida.


Não tenho estofo para mais!
Sejamos realistas!
Não tenho a imaginação dos grandes mestres da literatura.
Não tenho a prosa criativa que se exige numa obra-prima.
Nem tenho a arte necessária a uma poesia sem rima.

Limitado que estou, teria de escrever sobre um qualquer tema que não exija muito do meu estéril engenho criativo.

Gosto de ver os outros felizes, gosto de ver sorrisos e ouvir gargalhadas.
Sem jeito para a comédia teria de me apresentar como o jogral de serviço.
Como não tenho outras aptidões...

Teria de assumir que sou um perito na arte de cozinhar manjares intragáveis, desenrascando os ingredientes, essenciais às receitas, que estão em falta porque me esqueci de os comprar.

Teria de alardear que sou hábil no empilhamento da loiça por lavar.
Ilustraria com esquemas e algumas noções básicas sobre a lei da gravidade aplicada a copos, pratos e outros acessórios.

Porque sei que estes assuntos são caros à minoria masculina que habita este planeta, faria um esforço para incluir capítulos sobre: “como vencer a timidez e perguntar à mulher onde ela arrumou os tachos” e “como explicar à mulher que para se cozinhar é necessário sujar a cozinha e por vezes outras divisões da casa”.

Seria um livro apreciado pela maioria feminina, que o leria complacente para com os homens que se aventuram na sua esfera territorial, que sentiria a vaidade de ler as suas virtudes sublimadas pela incompetência crónica dos homens.

Atingido o vasto grupo dos leitores adultos, homens e mulheres, bastaria, para garantir que seria um campeão de vendas e de cópias piratas, incluir alguns desenhos para colorir.
Garantindo também presença na secção de livros infantis.
Seria um livro para toda a família, para os solteiros, os casados e os divorciados de todas as idades.


Por estas e por outras acho que se resolver um dia escrever um livro, salvo se as condições apresentas se alterarem radicalmente, este será ilustrado e versará sobre a gastronomia britânica. Será curto. Insalubre mas colorido!

Como tenho uns resquícios de pudor não me meto nisso.


Pequena nota para a minha mãe:
Não te preocupes mãe! Não estou a passar fome.
Não mãe, isto é tudo a fingir.
Sim, o micro-ondas funciona muito bem!
Pensei em arranjar loiça descartável mas isso é muito mau para o ambiente.
Como é que fazes o molho do esparguete à bolonhesa ficar com aquela cor avermelhada?

23 janeiro 2007

Cabo...

Solta a morna nesse crioulo doce!
Vibra as cordas da guitarra nessa bossa-nova suave!

Embala com essa cantiga de ninar!
E solta a voz nesse landu maroto!
Meneia com essa coladeira!
Samba devagar esse funaná!

Ai, mulatinha canta!
Ah, mulatinha dança!
Aroma da Praia, sabor a Sal!
Ah, mulatinha canta! Dança!
Canta e encanta!


Anotem:
Mayra Andrade.
Lançou o seu primeiro album - Navega - em 2006.
Precedeu Omar Pene e Salif Keita no midem.
Brilhando sem ofuscar para um público apático.

21 janeiro 2007

Lado oposto...

Pouco passa das três da tarde.
O Sol apresenta-se com um brilho tímido, entrecortado por uma camada de nuvens altas.

Estou parado no trânsito sem saber porquê.
Uma multidão deambula pela rua, aparentemente sem objectivo.
É domingo, um aprazível domingo de Inverno.

Cinco minutos mais à frente, um cartaz de cores garridas anuncia o início de um qualquer festival de música.
Nada mais banal, penso eu, numa terra que tem um palácio de festivais.

A polícia interrompe o trânsito, um, dois, três bólides de luxo cruzam a estrada em direcção a um hotel. Vidros escurecidos ampliam a curiosidade de quem espreita à espera de ver os artistas.

Um bando de gentalha histérica corre atrás das viaturas. Máquinas fotográficas em punho e blocos de notas esperançados num autógrafo.

Crianças saltam, alegremente, nuns trampolins do outro lado da rua. O carrossel anuncia nova viagem e recomeça a girar. Gelados, pipocas e algodão doce...
A pureza dos seus risos é um contraste gritante com os espasmos colectivos em frente ao hotel.

Maralha que deixa de apreciar a simplicidade das coisas, que procura na confusão um rasgo de felicidade efémera, nos sorrisos de outros por entre os disparos dos obturadores, comprimidos contra a vedação.

O trânsito avança devagar, libertando-me do tumulto. Passo à frente do hotel e olho para a alegria sincera das crianças no lado oposto.

19 janeiro 2007

Queijo...

Começo pelo supermercado, onde fui para comprar duas ou três coisas, antes de regressar a casa depois de mais uma semana de trabalho.

Ignorei a minha regra básica número um das compras: “Não ir às compras com fome.”
Resultado: gastei umas sete vezes mais dinheiro e cerca de cinco vezes mais tempo do que o inicialmente previsto.
Isto para não falar da quantidade de comida de qualidade e gosto dúbios que comprei a pensar que devia experimentar.
Afinal meti para o cesto um monte de coisas que na altura tinham um aspecto apelativo mas que agora... enfim... alguém há-de comer aquilo, hei-de ter fome noutros dias.

A verdade é que saí de lá contente e ainda parei naquela padaria da esquina para comprar uma baguette quentinha.

Confesso que depois de um repasto avantajado e carregado de sabores ricos e fortes, fiquei orgulhoso. Ao fim de quase um ano de exílio, consegui finalmente descobrir sabores mais de acordo com o meu requintado palato lusitano.
Um salsichão bolorento, umas fatias de paio, um pedaço de queijo de cabra, umas azeitonas retalhadas temperadas com alho e, em estreia absoluta, manteiga com sal.

Esta manteiga vai muito melhor no pão quentinho que aquela mixórdia doce, que vendem às toneladas e a que chamam beurre doux.

Claro que continuo a perceber patavina de queijos franceses, aliás hoje afirmei ao almoço que é difícil encontrar um bom queijo em França.
O meu erro foi tê-lo afirmado, em francês, a uma mesa cheia de franceses.
Embora ofendidos não me deixaram os olhos negros. Uns porque me acharam estupidamente ignorante e acharam que não merecia o esforço e outros porque olharam para mim e acharam que eu chegava para eles.
Obviamente, encheram-me a cabeça com as virtuosidades das queijarias francesas e de todas as outras coisas que eles consideram a excelência da gastronomia Universal.

Bem, fugi ao assunto do dia... hábito que não consigo perder e contra o qual continuo os meus exercícios de reabilitação. O que eu queria anotar hoje era, com certeza, muito mais interessante que estas discussões surdas sobre comida, com tipos que têm papilas gustativas primárias, que não acompanharam a evolução ou que foram manipuladas geneticamente.
Mas tenho a barriguinha cheia, com sabores agradáveis. Estou satisfeito.

Dizem que o que o queijo faz esquecer... se calhar foi isso...

10 janeiro 2007

93...

Acabaram-se as Festas! Ufa finalmente!
Chegou ao fim a época mais estúpida e hipócrita do ano.

E dei mais uns dias de descanso a estas notas, pois poderia ainda escrever algo menos apropriado para esta quadra que se quer de Paz.

O meu telefone deixou finalmente de anunciar aquelas curtas mensagens escritas, cheias de amor e carinho, enviadas por aqueles que para nós só existem nas agendas esquecidas nas memórias dos aparelhos.

O comércio já acusa a falta da clientela rafeira, que enche os centros comerciais durante três semanas inteiras e ainda pergunta porque é que as lojas não estão abertas até à meia-noite do dia 24.
Grandes autocolantes e cartazes anunciam nas montras as Promoções e Saldos.

Afogados nas contas, nos rios de dinheiro que se gastaram nestes dias festivos, Janeiro é um mês duro e longo. E ainda se seguem Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro antes de um novo Dezembro.

Já houve tempos em que eu gostava da quadra natalícia.
Vibrava com a antecipação de uma mesa cheia, de comida e de gente, enquanto polvilhava os sonhos e filhoses, com açúcar e canela, que a minha avó fritava durante horas a fio.
Ao redor do bacalhau e das couves da consoada, a excitação que se começava a elevar, era alimentada também pelos sorrisos mais rasgados e risos mais altos do que habitualmente.
Terminada a sobremesa os minutos até às doze badaladas eram sempre tão compridos que fazia por comer devagar ou continuar a saborear outras iguarias.

Mas isso era antes... antes de crescer.

Depois veio a constatação de que o Natal é só para alguns poucos felizardos.
Que a esmagadora maioria do mundo não recebe um presente.
Veio a noção de que os valores que se pregam nestas datas são esquecidos durante o resto do ano.
Que a sociedade está mergulhada num sentimento consumista e que se consome a si própria.
As tradições perder-se-ão. Dentro em breve não serão mais que resquícios nos livros de contos.

Antes sorria, com compaixão, quando lia o conto “Natal” do Torga.
Este ano, quando o procurei nas prateleiras da estante e reli, dos meus olhos escorreram lágrimas de uma pura tristeza reconfortante.
Não é pela minha formação católica que me revejo naquele conto, mas sim pelos valores que o meu juízo filtrou como válidos e que defendo com a minha honra.
Filtros de alguma lógica e bom-senso que devo à família.

A família também se renova, as gerações sucedem-se.
Talvez um dia o meu entusiasmo renasça das cinzas e voe como a Fénix, nos rostos e corações dos mais novos que hão-de vir.
Passarei o testemunho!

A felicidade está e estará sempre nas coisas simples.

Nota nostálgica esta, afirmarão vocês com toda a convicção.
Terão razão.

Como eu disse a família renova-se.
Com esta nota, a primeira presa em 2007, assinalo a morte da Vó Xandrina.
Para mim, ela representará sempre mais que os outros a quem fiz referência neste bloco de notas. Se fui capaz de assinalar outras efemérides necrológicas, algumas tecendo largos elogios, por uma questão de coerência terei de perpetuar, aqui também, a memória da minha avó.

Vó Xandrina
Alexandrina dos Prazeres, senhora dos seus 93 aninhos, não acreditava que o Homem tinha caminhado na Lua mas acreditava em nós, nas três gerações que gerou e criou.
Fico apenas chateado por ela me ter faltado à promessa de esperar pela quinta geração da família.
Sei que tenho a minha cota parte de responsabilidade nesse aspecto e que há limites que nos são impostos pela Natureza.
Por isso afirmo que aqueles que serão nados saberão quem ela foi, o que fez, o que disse.
Saberão também quem foram os outros de quem serão descendência.
Há coisas que têm de ser preservadas.

E assim começa 2007. Como 2006 terminou.
Gente a nascer e gente a morrer...
Celebre-se a vida.
Com mais entusiasmo e sentimento que o Natal.


Pequena nota:
Para quem não conhece "Natal", procure-o nos "Novos Contos da Montanha" de Miguel Torga.