23 outubro 2006

Aprendizagem...

É interessante verificar como cada ser humano encara uma viagem.
Independentemente do motivo porque se viaja, existe um padrão de comportamento que cada um adopta e adapta, que influencia a sua percepção do que o rodeia e o seu relacionamento com o que o envolve.

Se a minha área profissional fosse a psicologia, este seria certamente um tema que me serviria para uma longa carreira académica. Para um mero observador, desconhecedor dos meandros da psique humana, é ainda assim, uma actividade reveladora e instrutiva – levantar a cabeça e olhar em volta.

Os tiques e jeitos com que as pessoas se sentam no comboio, no metro ou no avião, se ajeitam nas filas para embarcar, ou comprar um bilhete, revelam toda uma panóplia de pequenos segredos pessoais e do povo a que pertencem.

Com algum treino de ouvido, não é preciso muito, é possível, por exemplo, identificar a origem de quem pede um copo de leite no café, ou pergunta se o autocarro vai para um qualquer ponto no mapa que tem nas mãos.
Uma série televisiva da BBC, muito conhecida e apreciada, utilizou com mestria as diferentes características do sotaque da língua inglesa, falada pelos povos europeus, para identificar a origem das personagens.
Sem sair do pequeno rectângulo no sudoeste da península ibérica, é perfeitamente possível identificar a região de origem de alguém através, não só do sotaque mas também, das palavras e expressões utilizadas.

O passo seguinte, intuitivo para qualquer aprendiz de detective, é verificar pelos sinais vitais do viajante sob observação, os seus níveis de ansiedade, devidos à natureza da viagem, ao meio de transporte que se prepara para utilizar ou onde já entrou, ou à maior ou menor dificuldade que tem em comunicar.

Mas estes são meramente exercícios de observação, outros desafios se colocam a um intrépido viajante, interessado em ocupar o seu tempo de forma mais produtiva.

Nunca viram aquelas caricaturas do turista clássico? Que chegam a uma qualquer ruína, com o mapa desdobrável aberto e a brochura com a descrição do interesse do local? E que, lá chegados, disparam duas ou três vezes o diafragma da máquina fotográfica (agora com o advento das engenhocas digitais, disparam vinte e três vezes, de vários ângulos) e pisgam-se apontando para o ponto do mapa seguinte? Parecem os putos pequenos a unir os pontos numerados de um desenho.
Correm de um lado para o outro e o que aprendem? Nada... ficaram a saber tanto quanto está descrito no guia, se é que o leram, provavelmente só viram os bonecos. Mas vão para casa todos contentes e dizem orgulhosos aos amigos:
"– Sabem onde estivemos? Em Conimbriga... olhem as fotografias, aquilo tem para lá uma quantidade enorme de calhaus, houve um povo primitivo, que nem sequer tinha electricidade, que para lá viveu. Muito bonito, vale a pena! Até porque nem sequer se percebe muito bem como é que eles se safavam, naquele ermo, sem telefone."

Também há o viajante com objectivos definidos e que não anda por aí a vaguear pelas ruas de uma qualquer cidade em ruínas, nem pelas ruas de qualquer cidade. Vai para praticar um desporto específico, ou fazer um retiro espiritual, por exemplo. O mais comum, não sei bem porquê, é ir simplesmente à procura de praia e sol... sem mais nada.

Há, portanto, várias formas de classificar um viajante, desde porque é que se mete nisso até às atitudes e posturas que assume.

(Com esta conversa toda veio-me à cabeça uma história... lá vou eu divagar.)

Um colega meu conta, sempre com o seu ar revoltado, a sua aventura na estação de autocarros expresso (ou seria do comboio? esta minha cabeça já não é o que era mas para o caso também não interessa).
Chegou ele, a suar, à fila da bilheteira, colocando-se na terceira posição, uns bons dez minutos antes da hora marcada, para a partida do último autocarro (ou comboio), numa sexta-feira à tarde, depois de ter saído das aulas e ter corrido que nem um desalmado. Cinco minutos depois continuava exactamente no mesmo sítio e começou a preocupar-se com o horário. Olhou para o início da fila onde estava uma senhora, já com uma certa idade, que, pela descrição, não teria o dia muito preenchido, a pedir informações sobre os horários, preços e itinerários do autocarro (ou comboio) que pretendia apanhar na terça-feira seguinte.
Já nem me lembro se ele chegou a conseguir embarcar, a questão nem é essa, a verdade é que a lei de Murphy impõe que a senhora, que não tem nada que fazer durante todo o dia todo, tenha de ir para a única bilheteira aberta, a uma sexta-feira, a hora de ponta, pedir informações sobre uma viagem de alguns quilómetros de autocarro (ou comboio), que terá de fazer, eventualmente, quatro dias depois.

Esta senhora, que provavelmente ficou muito chocada quando o meu colega lhe pediu (talvez não delicadamente) que fosse à sua vida, enquadra-se no tipo de viajantes de nervoso miudinho género: saia-da-frente-que-estou-atrasado-o-meu-comboio-é-daqui-a-três-dias.

(Não me perguntem o que é que este episódio fatídico tem que ver com o resto do texto... lembrei-me apenas que podia ser interessante... e farto-me de rir cada vez que imagino a cena.)

Onde é que eu ia? Ah! Já sei... estava quase a acabar.

Mas afinal o que é viajar? A resposta a esta pergunta deverá ser pessoal e intransmissível. E a definição encontrada deverá corresponder à personalidade de cada um e à forma como se encara o mundo.

Para mim, viajar é uma partilha, é, de certa forma, abrir-me ao destino escolhido ou imposto, haverá sempre momentos inesquecíveis, novos costumes e saberes que se adquirem.
Estou certo que, se muitos mais pensassem assim, estando o mundo cada vez mais perto, teríamos uma muito melhor relação entre povos e civilizações.

Nota extra:
Reparem que eu disse: adquirir saberes e costumes. Não quero com isso dizer que tenha que me converter, terei certamente de os respeitar, tal como espero que quem visita a minha terra respeite os meus. As lições aprendidas, as boas e as más, ajudarão a melhorar a minha maneira de interpretar as pessoas, a sociedade e tudo o que me rodeia.

Notas para distraídos:
A série da BBC... espreitem aqui:
http://www.bbc.co.uk/comedy/guide/articles/a/alloallo_7770250.shtml

E Conimbriga afinal até está na Internet (mesmo não tendo telefone na altura):
http://www.conimbriga.pt


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