07 novembro 2006

Aterragem...

Após uma pequena pausa, de um pequeno silêncio, em que as notas esvoaçaram em busca de inspiração e escaparam da gaiola que é o meu crânio, sem que tentasse prendê-las, volto a tentar laçá-las.
Mesmo voltando à carga com aquela nostalgia própria do fim das coisas, em particular do fim das férias, espero que não me tolde o engenho nem a arte, que são já ínfimos por si sós.

Li algures, ou terei apenas escutado uma qualquer conversa transviada, que a entrada em Lisboa é das mais bonitas e emocionantes do mundo. Isto referia-se ao tempo das naus, quando passavam a barra do Tejo em busca de porto seguro, com os porões atafulhados de especiarias e sedas, onde antes seguiam pólvora e munição para canhão.

Descontando a óbvia parcialidade deste marinheiro de água doce e porque nem sequer sou alfacinha, afirmo, sem desprimor de outras belas terras do cantinho solarengo1 que ocupa o uns poucos quilómetros quadrados no sudoeste da vasta Europa, que as entradas de Lisboa são um encanto, um feitiço.

Claro que parados no trânsito num dia de chuva, encerrados num comboio a parar em todas, ou entalados num autocarro abafado e cheio de odores estranhos, o feitiço parece um bruxedo e o encanto desvanece-se num desespero. Entrar em Lisboa todos os dias também nos torna imunes à beleza das coisas, satura a nossa retina.

Há, naturalmente, algumas entradas de Lisboa que permitem encarar a cidade com melhor disposição que outras e a interpretação da sua beleza depende do contexto e de muitos conceitos subjectivos, mas permitam-me os devaneios que se seguem.

Pelo viaduto do Engenheiro...

Onze da noite perto da meia-noite, pouco trânsito a descer a auto-estrada, pelo meio da floresta, em direcção a Lisboa. De quatro faixas passamos a duas e, pouco depois, o ressalto duma junta de dilatação assinala-nos a entrada no viaduto Duarte Pacheco. A desaceleração, provocada pelo espanto da vista desafogada sobre o vale, coloca-nos abaixo do limiar do excesso de velocidade. Olhamos à direita e notamos o arco do tabuleiro da 25 de Abril e a curva do viaduto de Alcântara. Olhamos à esquerda e as pedras, as brancas e as sujas, do aqueduto são realçadas por uma iluminação bem colocada. No alto do monte seguinte três torres de vidro sublinham a modernidade da cidade. Subimos, a esta hora as obras eternas não incomodam o tráfego, e descemos para o coração da cidade. E dali vamos para onde quisermos.

De Sul para Norte...

Já passa da hora de almoço, o abrandar do autocarro e a fome, despertam-me aos poucos de um sono solto. O pára arranca em direcção à portagem é desconfortável. Está calor. Procuro ajustar o fluxo de ar sobre o meu assento, desisto. Volto a fechar os olhos. Sinto o autocarro arrancar novamente e desta vez ganha um pouco mais de velocidade. Um zumbido surdo provoca uma vibração que me sobressalta, desvio a cortina e o sol cega-me. Deixo a minha vista adaptar-se à luz exterior percorrendo a paisagem. Estamos altos sobre o rio. Mesmo com a bruma provocada pelo calor vejo ao longe a Serra de Sintra, parece pequena, desproporcional. Olho para mais perto, para os recortes da orla costeira. Oeiras, Caxias, Algés, Belém. A torre do porto é um recorte inclinado. A torre de Belém custa a ver pelo seu tom claro. O padrão está mais perto. Os Jerónimos e o Centro Cultural formam um conjunto estranho. A antiga fábrica de electricidade e a cordoaria são os elementos de destaque quando espreitamos mais para baixo, já depois do segundo pilar. Olho pela janela do vizinho, à direita, e a basílica surge de relance. Ciprestes altos crescem verdes, escuros, por entre fileiras de pedra clara. Volto-me para o meu lado ainda a tempo de ver o palácio da Ajuda, antes do autocarro se desviar para apanhar a avenida Calouste Gulbenkian. O aqueduto, onde as águas correram livres, ergue-se por cima das nossas cabeças, num grande arco ogival, feito à medida da estrada. Uma mesquita e uma praça com calhaus numerados no meio de um relvado. Mais uns semáforos, uma estátua do Duque da Terceira, chegada ao destino: terminal rodoviário na Casal Ribeiro2.

De Norte para Sul...

Final de tarde, quase lusco-fusco, o sistema de som do alfa avisa que a próxima estação é a gare do Oriente e o comboio começa a abrandar. Viajando de costas voltadas para a frente, espreito pela janela e vejo uns edifícios novos, com uma arquitectura recente. Umas altas palmeiras brancas, troncos de metal e folhas de vidro, cobrem as plataformas da estação onde o comboio parou. Está de chuva, o espaço não parece abrigado, mas é consistente com o que o rodeia e agradável ao olhar. O comboio apita e segue a sua marcha. Agora mais devagar, outros edifícios novos e outras estruturas metálicas enquadram o panorama. Aqui e ali cores garridas e desenhos abstractos. Novo aviso: Santa Apolónia. Desembarque. O antigo edifício da estação terminal contrasta com a novidade da estação anterior. Este podia ser um cenário para um filme de mistérios ou de amores.
Saída para um largo, mastros de um navio atracado e colunas de um museu... Lisboa.

Subindo o rio...

Passa pouco das sete e meia da manhã, os primeiros raios de um sol ainda submerso coram o céu à nossa frente. Alinhamos com o sinal vermelho da Gibalta e o verde do Bugio, Espichel e São Julião continuam com as suas intermitências mas já ignoramos as suas luzes. Olho para lá da proa e avisto os dois pilares da ponde suspensa, as suas luzes ainda brilham, brancas, como estrelas, dependuradas nos seus cabos de aço. Os reflexos laranja intensificam-se. A bombordo uma torre com um baluarte apetrechado para a guerra, um padrão, um mosteiro, uma capela no alto da colina. Dou conta que a iluminação pública cedeu o seu lugar à luz amarelada do sol que desponta no horizonte, sob o tabuleiro da ponte, encandeando a vista por breves momentos. O traço de colinas surge nítido, contrastando com o clarear do céu. É Novembro, a frescura matinal agride a minha cara, mas não me consegue despertar do sonho. As alucinações sucedem-se, monumentos com cúpulas brancas, como que nos transportam para outros tempos, castelo sobranceiro que nos impõe o respeito da idade e, passado um estreito, por baixo da grande ponte metálica, estamos de novo no mar. Acolhidos de braços abertos por Cristo, chegámos a Lisboa!


Lisboa, cujas colinas ondulam altivas na orla de um rio e se espraiam para o mar da palha, tem um exotismo próprio que deixa a sua marca no incauto visitante.


Anotações:
1 Com as cargas de água que se abatem sem piedade por todo o país, seriam levados a criticar a escolha da palavra "solarengo", sorriam apenas e lembrem-se que se amanhã chove noutro dia há-de fazer sol.
2 O terminal da Rodoviária Nacional já não é aqui. Aliás, a Rodoviária Nacional já não existe! Da cave da Casal Ribeiro, a Rede de Expressos saiu para, temporária e ilegalmente, ocupar um espaço no Arco do Cego, de onde saltou para Sete Rios, em frente ao Jardim Zoológico.



Nota final:
Faltou escrever: Pelo ar...
Essa tem várias aproximações. Talvez aterre noutro dia...

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